Nunca se viu algo semelhante.
Em uma prova de natação de 10 quilômetros em águas abertas – a chamada maratona aquática -, que dura cerca de duas horas para nadadores da elite mundial, uma chegada emocionante deve ser algo impossível – alguém poderia imaginar.
Qual o quê.
Apenas para ilustrar o panorama da prova de 10 km feminina do Mundial de Esportes Aquáticos que ocorreu na noite de ontem, em Yeasu, na Coreia do Sul, apenas acompanhem a seguinte estatística:
Na prova de 200m livre feminino dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2012, a diferença entre a primeira e a 10ª colocada foi de 3s63.
Nos 10 km de ontem, o tempo entre a vencedora e a 10ª colocada foi quase o mesmo: 3s9.
Mas 10 km correspondem a 50 vezes a distância de 200 metros.
Na maratona aquática, uma diferença de quase quatro segundos é irrosória.
Jamais observou-se margem tão estreita entre as dez primeiras colocadas em um Mundial na prova.
No último Mundial, essa diferença foi de 27s6.
O mais próximo que já se observou foi 4s4, no Mundial de 2013.
A emoção já seria justificada por uma chegada tão acirrada. Mas, sabendo-se que essa é a prova mais tensa de todo o ciclo olímpico, a adrenalina subiu a patamares elevadíssimos.
Isso porque as 10 primeiras colocadas garantiam vaga para a prova olímpica de 10 km de Tóquio, no ano que vem.
(ainda haverá uma repescagem no ano que vem, em prova a ser realizada na cidade japonesa de Fukuoka)
Por isso, o alívio foi enorme ao ver Ana Marcela Cunha, o maior nome das águas abertas no mundo dos últimos dois anos, na quinta posição.
A brasileira esteve no pelotão de frente durante toda a prova.
Mas, a cerca de 200 metros para o final, cinco nadadoras, incluindo Ana Marcela, emparelharam na liderança, com outras tantas logo atrás.
Qualquer coisa poderia acontecer.
E aconteceu.
A francesa Aurélie Muller, atual bicampeã mundial, e que liderava a prova até poucos metros do fim, acabou terminando na 11ª posição.
A regra diz que, caso uma nadadora de um país conquiste a vaga olímpica no Mundial, nenhuma nadadora do mesmo país poderá conquistar outra vaga na repescagem.
Como sua compatriota Lara Grangeon terminou na quarta posição, Muller não competirá nos Jogos Olímpicos.
Um drama colossal para a nadadora, que terminou a prova da maratona aquática na Rio-2016 na segunda posição e foi desclassificada, fazendo com que a italiana Rachele Bruni ficasse com a prata e a brasileira Poliana Okimoto herdasse a medalha de bronze.
Sem Muller, Ana Marcela será a única nadadora que competiu na estreia da modalidade em Jogos Olímpicos, em 2008, a estar presente em 2020 – será sua terceira participação olímpica.
O ouro foi para a chinesa Xin Xin, que assumiu a liderança apenas na reta final. Quarta colocada na última Olimpíada, ela tem estado em posições de destaque em competições de nível mundial, incluindo a repescagem para a Olimpíada de 2016, em que venceu, e duas vitórias na Copa do Mundo no ano passado.
Foi seguida por duas vice-campeãs olímpicas: a de 2012, a americana Haley Anderson, e a de 2016, a italiana Rachele Bruni.
Curiosamente, nenhuma das que chegou ao pódio havia conquistado medalhas em provas de 10 km em Mundiais anteriores (Anderson venceu os 5 km em 2013 e 2015).
Outros nomes de destaques que garantiram vaga olímpica foram a americana Ashley Twichell, atual campeã mundial dos 5 km, e a campeã olímpica em 2016, a holandesa Sharon van Rouwendaal – que se classificou na bacia das almas, estando fora das dez primeiras colocadas por boa parte da prova e terminando na 10ª posição somente um décimo à frente de Aurélie Muller.
Para Ana Marcela, alívio. O pesadelo de 2011, em que terminou o Mundial na 11ª posição e portanto sem direito a disputar a Olimpíada do ano seguinte, não se repetiu.
Mas ficou uma ponta de frustração, como ela não escondeu na entrevista para o SporTV.
O objetivo era o ouro, ou, ao menos, uma medalha.
Afinal, na Copa do Mundo deste ano, em quatro etapas ela conseguiu dois ouros e duas pratas, além de ter sido a vencedora geral em 2018.
Além disso, ela chegava ao pódio dos 10 km em Mundiais desde 2013 – foram uma prata e dois bronzes nas últimas seis edições.
Um final de prova agridoce.
Mas, se lembrarmos de 2011, ou, para não ir muito longe, se observarmos a situação de Muller, a brasileira deve sentir-se grata.
Uma mente campeã como a de Ana Marcela, no entanto, não se satisfaz facilmente.
Viviane Jungblut terminou em 12º lugar, mesma posição obtida no Mundial de 2017. Ficou a oito décimos da vaga olímpica, algo que certamente tirará seu sono esta noite. Mas que certamente lhe servirá como grande experiência e, sabendo aproveitar, uma lição para uma carreira duradoura.
Inclusive para ir em busca da vaga olímpica na prova de 1500m livre em piscina, na qual tem boas chances.
Ela retorna para os 5 km daqui três dias e, tendo chegado tão próxima das favoritas hoje, pode brigar por algo mais.
Ana Marcela nada os 5 km e os 25 km, em busca do quarto título dessa última, buscando se tornar a mulher com mais medalhas na história das águas abertas em Mundiais de Esportes Aquáticos (ela tem nove, empatada com a holandesa Edith van Dijk).
A prova mais importante já foi. Mas o Mundial apenas começou.