No começo da semana uma postagem de Poliana Okimoto no Instagram sobre a convocação da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA) e do Comitê Olímpico do Brasil (COB) para a Missão Europa causou impacto em todas as mídias sociais.
Foram convocados 15 atletas, sendo 14 homens e apenas uma mulher: Viviane Jungblut. Segundo a CBDA, foram utilizados como critérios de convocação todos os atletas que obtiveram na temporada de 2019 tempos dentro do índice olímpico A estabelecida pelo COI. Além de Viviane, Etiene Medeiros também se enquadrou neste critério, mas optou por recusar o training camp em Portugal e ficar treinando no Brasil.
Não é segredo que a natação feminina passa por momentos de dificuldade. Se analisarmos o índice A da FINA para participação nos Jogos Olímpicos, temos 20 homens abaixo do tempo exigido contra apenas duas mulheres que nadaram abaixo da marca ano passado.
Mas o que pode ser feito?
Motivadas pelo post de Poliana Okimoto, algumas nadadoras se organizaram para criar um comitê de atletas do gênero feminino. A iniciativa foi ouvida pelo diretor-executivo da entidade Renato Cordani e pelo diretor de natação Eduardo Fischer. Uma das nadadoras que participou da conversa foi Pamela Alencar, veterana da seleção brasileira e a melhor nadadora dos 200m peito há quase oito anos. A SWIM CHANNEL conversou com a nadadora que explicou um pouco mais sobre como irá funcionar esse Comitê.
SWIM CHANNEL: Olá Pamela, primeiramente obrigada por nos conceder essa entrevista! Mesmo sendo muito recente gostaríamos de saber um pouco sobre como foi o movimento para a formação do Comitê.
PAMELA ALENCAR: Tudo aconteceu após a repercussão do post da Poliana sobre a convocação da CBDA para o treinamento em Portugal onde nem todos os critérios estavam tão claros, tendo integrantes que não haviam conquistado o índice A e a CBDA não publicando o motivo da convocação que foi questionado em nossa reunião. A diferença entre o desempenho da natação feminina e masculina no Brasil já existe há muito tempo e já foram realizados alguns projetos para tentar equilibrar este cenário. Infelizmente ainda tem muito que melhorar e em conversas com as outras meninas surgiu a ideia de se organizar. Até o momento criamos um grupo no whatsapp onde meninas com mais de 16 anos que são ou já foram federadas podem integrar como voluntárias e futuramente elegeremos quatro representantes oficiais. Nosso grupo já tem mais de 150 integrantes que foram convidadas e na próxima sexta (dia 24) teremos nossa primeira reunião com a presença de Fabiola Molina, Etiene Medeiros, Poliana Okimoto e Flavia Delaroli.
SWIM CHANNEL: Sabemos que a natação feminina brasileira viveu um momento muito especial em Atenas-2004 onde teve um desempenho mais expressivo que o masculino. Ali foi um marco onde acreditávamos que a natação feminina brasileira assumiria um novo espaço. Infelizmente não foi isso que aconteceu, tanto em Pequim-2008, quanto Londres-2012 voltamos a ver um destaque masculino muito maior nas piscinas. Na ocasião a CBDA lançou um projeto onde a natação feminina teve Fernando Vanzella como head coach. Pela primeira vez a natação teve um trabalho com exclusividade. Você acredita que esse projeto teve seus frutos? Caso não, o que poderia ser feito diferente?
PAMELA: Em nossa reunião com o Renato Cordani esse tema entrou em pauta, até mesmo porque a Giovanna Diamante foi integrante e se considera beneficiada pelo projeto. Na ocasião as meninas que faziam parte tinham critérios próprios para viverem experiências no exterior como participações em competições e trainning camps. Foi nessa ocasião onde a ela pegou sua primeira seleção e se considerou preparada para competir lá fora, contrariando o que muitos técnicos falam quando as atletas estreiam na seleção e vão deslumbradas para o campeonato pela sua pouca bagagem. Muitos acham que pioramos os tempos por estarmos deslumbradas com o ambiente e por termos pouca experiência, o que nem sempre é o caso. Porém, com certeza essas vivências no exterior ajudam a te preparar mentalmente para quando acontecer uma convocação. Vendo o caso da Giovanna e outras meninas que participaram, acredito que este projeto contribuiu sim para a natação feminina, algo que muitas vezes não fica tão claro, pois os dirigentes costumam mensurar o sucesso do projeto apenas através dos resultados nas competições. Foi o caso no Rio-2016 quando nem as meninas e nem os homens nadaram bem. Não tem como colocar 100% dos créditos em um insucesso de um projeto e ainda desconsiderar as meninas que se classificaram para suas primeiras seleções através dele. Mesmo sabendo que tem muito o que aprimorar, reconheço os frutos daquele investimento.
SWIM CHANNEL: Na sua opinião, quais são as principais causas desta diferença entre ambos os gêneros em seus desempenhos?
PAMELA: O primeiro ponto é que sabemos que o treino para homens e mulheres nos clubes brasileiros é sempre o mesmo, tanto dentro como, fora d’agua. Só de realizar uma adequação nesse aspecto já teríamos ganhos. As mulheres também merecem ajustes em suas periodizações pelas influencias hormonais que regem seu corpo. Em um cenário onde se quer excelência no desempenho físico, não podemos simplesmente ignorar os aspectos hormonais como se eles não existissem, que é o que acontece atualmente. A forma de conduzir o treino para um grupo de homens e de mulheres também pode ser diferenciada. Claro que para isso o técnico precisará de uma orientação externa e estar aberto para o mesmo.
SWIM CHANNEL: Em algum clube que você passou já foi ministrado um trabalho especifico para aperfeiçoar o comportamento feminino dentro do meio esportivo?
PAMELA: Isso não aconteceu dentre as equipes em que estive presente. Já tivemos trabalhos individualizados com psicólogos, porém, nunca de grupo visando uma melhora do ambiente e também para o técnico.
SWIM CHANNEL: Você mencionou sobre a especificidade dos ciclos femininos, algum técnico seu já realizou um trabalho com adequações nos treinos referente a esse aspecto?
PAMELA: As adaptações nos meus treinos por motivos de ciclo menstrual só aconteceram quando eu solicitei e nem sempre eu e outras meninas somos levadas a sério. A postura dos técnicos é diferente no momento de acatar solicitações de meninos e meninas. Muitos vêem como uma frescura ou algo “chato” de lidar, tirando a real importância e quem acaba sendo prejudicada somos nós. Teve períodos em que treinei mais forte do que acreditava que meu corpo estava apto a suportar e ficava doente quase que uma vez por mês. Por não ter tido espaço e credibilidade para fazer os ajustes necessários, logo acabei perdendo semanas importantes do meu plano de treinamento. Isso poderia ter sido evitado se os técnicos fossem mais abertos para ouvir essas necessidades específicas considerando o real peso que elas têm sobre nosso desempenho.
SWIM CHANNEL: Você acompanha o treinamento dos atletas 4x100m livre no Pinheiros, onde os principais velocistas do país são rivais e treinam juntos diariamente. Vemos que as meninas têm alguns desafios para treinar juntas devido a grande competitividade. Você acredita que isso poderia ajudar a natação feminina?
PAMELA: Realmente, por mais que haja desentendimentos e rivalidades tanto entre os homens, quanto mulheres, reconheço que entre nós tem sido mais difícil de lidar. Sinto que podemos ter uma metodologia melhor na hora de conduzir o treino. O ego feminino é diferente do masculino e muitas vezes a forma de lidar com a competitividade entre as meninas faz com que brigas se estendam para fora da piscina gerando um desgaste desnecessário que afeta o clima de treinamento em médio prazo. Sei o quanto é bom treinar com meninas fortes, porém, vejo que ainda precisamos encontrar formas de lidar melhor com esse cenário tanto por parte dos técnicos como das atletas.
SWIM CHANNEL: Visando as soluções, gostaríamos de saber se você acredita que a CBDA tem a responsabilidade de transformar esse cenário e como?
PAMELA: Sim, acredito que a CBDA pode criar projetos que impulsionem as meninas para um novo patamar. Sabemos que o cenário atual não é dos melhores e faltam recursos financeiros. Mesmo assim é fundamental criar estratégias e quando possível aplicá-las. A primeira questão importante é ter critérios mais claros nas convocações, para que sejam justas, transparentes e que ninguém se sinta desvalorizado ou desmotivado na busca por seus objetivos. Um papel importante da CBDA é criar oportunidades, trazer condições que façam com que as meninas tenham a possibilidade de se desenvolver a nível internacional, proporcionando clinicas, training camps e participações em eventos internacionais. A palavra chave é oportunidade, para as meninas que se dedicam enxergarem que elas têm chances de colher frutos lá na frente. Também é valido criar um mapeamento das principais causas com reuniões entre ex-atletas experientes, atletas ativas hoje, comissões técnicas e dirigentes para mapear as principais causas e soluções para isso. Ao ver a necessidade de implantar estratégias de orientações para técnicos e atletas, definir os focos dessas orientações, seja um psicólogo ou ginecologia do esporte ou outro profissional da saúde que ministre um trabalho que atue diretamente nas principais variáveis que influam no treinamento das atletas. Pretendo estudar esse cenário para descobrir as causas, as soluções e criar um planejamento para mudar o que não está bom. É a real missão do comitê que está nascendo.