Por Thiago Medeiros Rodriguez *
Imagine estar ao lado de um atleta que está prestes a fazer história. Agora, pense em todo o trabalho, dedicação e conhecimento que são necessários para chegar até ali. Em 2024, o mundo da natação parou para assistir Pan Zhanle quebrar o recorde mundial dos 100m livre durante os Jogos Olímpicos de Paris. Mas o que muitos não viram foi a equipe por trás dessa conquista.
Nesta semana, tive o privilégio de conversar com o Nuno Pina, fisioterapeuta português, que acompanhou de perto a jornada de Pan Zhanle rumo ao topo do pódio. De Lisboa à China, Nuno compartilhou conosco os desafios, as estratégias e os segredos que fizeram toda a diferença na preparação de um dos maiores talentos da natação mundial. Confira!
THIAGO RODRIGUEZ: Conta um pouco, quem é o Nuno? Como é a sua trajetória profissional, pessoal? Você foi nadador?
NUNO PINA: Sim, é verdade, eu fui nadador durante cerca de 12 anos. Depois, fiz ali uma passagem pela parte da arbitragem. Durante quatro anos, para ganhar algum dinheiro, fui árbitro de natação. A carreira essa foi muito curta, não era um objetivo progredir nessa área, era só mesmo ganhar algum e estar no meio e rentabilizar um bocadinho daquilo que sabia. Tirei o curso e exerci durante quatro anos. Depois, entrei na parte da fisioterapia. Quando acabei o curso, comecei logo no meu último ano ainda de licenciatura em fisioterapia. Comecei a trabalhar no clube onde terminei a minha carreira, que é aqui o Sporting, em Lisboa. E, entretanto, seguiu-se este arrancar ligado ao alto rendimento. Depois, passar para a parte da seleção. Depois, representar o Comitê Olímpico de Portugal. E depois, então, rumar à China, onde estive nos últimos dois anos.
THIAGO RODRIGUEZ: Como foi essa ida para a China? Como que surgiu esse convite para você ir parar na China?
NUNO PINA: Então, isto foi inesperado. No final de 2022, recebi um contacto no Linkedin. O senhor estava interessado em enviar, em submeter a minha candidatura a uma oportunidade profissional na China. Já tinham visto o meu currículo, encaixava naquilo que eles procuravam. Tinha sido nadador, tinha já oito anos a trabalhar na área. Tinha já feito, na altura, já quatro campeonatos do mundo de natação. Já tinha ido a, pelo menos, seis campeonatos da Europa. Pronto, já tinha alguma experiência internacional. E já tinha trabalhado com atletas de topo aqui em Portugal, recordistas nacionais. Atletas que foram a Campeonatos Mundiais. E submeti a minha candidatura. Isto no final de 2022. No início de 2023, após algumas fases de entrevista e de conversa, chegamos a um acordo. Fui o candidato, felizmente, selecionado.

THIAGO RODRIGUEZ: Como era o convívio com os atletas chineses?
NUNO PINA: O convívio com os atletas chineses, no geral, não permitia grandes conversas, porque nós, na verdade, não nos comunicamos na mesma língua. Portanto, eu falo português, mas também falo inglês, e eles falam chinês e só um bocadinho, mesmo, muito, muito discreto de inglês. Nós tínhamos que conversar através de tradutores, quer seja, intérpretes, pessoas que nos ajudavam a traduzir, neste caso, chineses que falavam inglês, ou através de aplicativos de tradução pelo celular.
THIAGO RODRIGUEZ: E com Pan Zhanle?
NUNO PINA: No início, foi difícil estabelecer alguma ligação, mas depois, comecei a me identificar com o Pan, em específico. Nós tínhamos muitas coisas em comum. Portanto, começamos, mais do que aquilo que nós dizíamos, era como nos relacionamos. E essa nossa relação era uma relação muito próxima, nós vivíamos juntos no mesmo centro de treinamento, tomávamos café da manhã, almoçávamos, jantávamos sempre juntos. Íamos para os treinos, vinhamos dos treinos sempre juntos, fazíamos a parte da terapia manual e a parte dos treinos físicos sempre juntos, ele ainda tinha aulas de inglês e eu o ajudava nas aulas pelo menos duas vezes por semana. Portanto aquilo era quase um casamento, digamos assim, entre atleta e fisioterapeuta, que acabou por acontecer com muitos outros atletas de elite e que eu tive a oportunidade de partilhar com este nadador em específico.

THIAGO RODRIGUEZ: Como você atribui a parte do seu trabalho no resultado, no recorde mundial?
NUNO PINA: O nosso trabalho é sempre um trabalho complementar ao estado do treino, portanto o treino principal é o treino da água. Quem é nadador, quem foi nadador percebe isso perfeitamente, ainda por cima a água tem características completamente diferentes do meio terrestre, portanto desde a pressão hidrostática, neste caso, a força da gravidade que acabam por atuar no corpo de formas muito diferentes do que no meio terrestre, nós durante todo o nosso ciclo de vida somos moldados pelo meio terrestre onde passamos mais tempo, e portanto basta o nadador passar ali e nós sabemos que cinco dias, uma semana sem nadar parece que caímos na água e que já não sabemos nadar, que não sentimos bem o corpo e que estamos pesados. Grande parte dos esportes têm esta sensibilidade e esta especificidade, portanto torna a prática da natação o principal na preparação dos atletas, mas quando chegamos ao alto rendimento, a parte da redução do risco de lesões, da recuperação pós-treino e pós-prova, a parte da otimização desportiva no desenvolvimento da mobilidade, da força, da flexibilidade, é muito importante. Eu quero acreditar que tive duas fases com o Pan. A primeira fase em que tinha uma menor preponderância na sua preparação física, onde eu fazia só mais a parte da terapia manual e das rotinas de mobilidade e do core, em que eu digo que isso tinha uma influência, se calhar 10, 20% daquilo que era a preparação dele, mas que depois como trabalho de força, em que o Pan teve uma evolução muito significativa. O peso corporal e a massa muscular aumentaram, os índices de força, de uma forma muito, muito, muito significativa, em alguns padrões de movimento, mais do que duplicou os índices de força máximo. Em cima os índices de potência, aí quero acreditar que o percentual era maior, provavelmente mais perto dos 30%, mas lá está, isto são tudo dados hipotéticos, gerais. É um trabalho complementar, nunca vai substituir ou ser tão importante como o treino na água, mas por se tratar do alto rendimento acho que tem aqui uma preponderância ainda significativa.
THIAGO RODRIGUEZ: E quanto ao acesso à tecnologia, vocês tinham alguma coisa diferente lá? Como que era isso?
NUNO PINA: Assim, do que notei mais diferente são dois pontos. O primeiro ponto é, embora aqui, pelo menos aqui em Portugal, em Lisboa, nós cada vez mais temos acesso, por exemplo, a material da avaliação física, como plataformas de força, os dinamómetros, por exemplo, a avaliação biomecânica, nós aqui temos acesso a esse material. Mas não é um acesso tão facilitado quanto tinha na China. Portanto, a gente tinha plataformas de força em todo lado, dinamómetros em todo lado, tudo o que era material de avaliação e de registro de treino, como por exemplo o VBT, o Velocity Based Training, nós tínhamos vários softwares e hardwares para poder utilizar, desta parte não nos faltava nada, quer na parte da avaliação, quer na parte do treino físico. E, portanto, isso aí é destacar. É uma coisa que nós já temos, por exemplo, em Portugal, que é a realidade que eu conheço melhor, quer nos Centros de Alto Rendimento em Lisboa, quer nos outros Centros de Alto Rendimento em Coimbra e no Fuchal, que não tínhamos tanto equipamento na Federação quando eu trabalhava lá até 2019, mas tínhamos algum material. Na China tínhamos muito material. Nunca faltava nada, eu podia ter o meu próprio equipamento, andar com o meu kit de equipamento, que permite muito mais agilidade, muito mais rapidez na utilização e, portanto, creio que essa fosse uma verdadeira mais-valia. O segundo ponto, e aqui é um bocadinho diferente, que é a tecnologia que já havia na piscina. Havia muita monitorização no cais da piscina, dentro da piscina, com câmeras de 5 a 5 metros ao longo de toda a piscina de 50 metros para avaliação biomecânica e para registros de treino. Nós tínhamos um bloco que se chamava o Million Dollar Block, para fazer saldos, para avaliação de saldos, e, portanto, aí tínhamos todos os dados, e mais alguns, desde, obviamente, a força aplicada no bloco, a força horizontal, a força centrifugal, o tempo de voo, o ângulo de entrada na água e diversos dados que permitia-nos recolher informações muito relevantes. Creio que essas câmeras na piscina, o registro do nado, em contexto de treino, disponível para os treinadores era um diferencial.

THIAGO RODRIGUEZ: Havia uma equipe multidisciplinar para cuidar dos atletas na China?
NUNO PINA: Sim, nós tínhamos uma equipe muito grande, comparativamente à realidade europeia, posso dizer assim, que é a que eu conheço melhor. Normalmente nós temos uma equipe muito pequena do ponto de vista da equipe técnica, onde há um treinador, normalmente há um fisioterapeuta, pode haver um preparador físico que nem sempre existe, ou é o treinador da água que faz a parte da preparação física, ou o fisioterapeuta, e depois acaba por ir um nutricionista, de tempos a tempos, fazer uma avaliação da nutrição, etc. Na China nós tínhamos todos, portanto tínhamos desde o treinador principal, treinador adjunto e os treinadores da água, tínhamos a parte da fisioterapia, a parte dos preparadores físicos. Tínhamos aquilo que na China, que eu acho que não existe em mais lado nenhum, que é quase um assistente pessoal, que é normalmente um jovem fisioterapeuta que acompanha o atleta para todo lado, quer seja pós-treinos, quer seja, por exemplo, para entrevistas, conferências de imprensa, momentos dos mídias, e que acaba por andar sempre com este atleta, em que tem sobretudo funções de recuperação, ou seja, ajuda-o a levar, a mochila, tem relação à hidratação,por exemplo, coloca eletrólitos na água para reforçar a hidratação, vai com ela aos momentos de alimentação e salvaguardar que ele está a ter uma alimentação correta, portanto, é aqui o gênero de um colega, de um parceiro, que acaba por fazer muita assistência pessoal. Mas depois também temos a parte, tínhamos o nutricionista full-time, que era um nutricionista que dava apoio a todos os atletas. Os biomecânicos, tínhamos quatro biomecânicos na equipe, que acabavam por fazer a análise biomecânica e os relatórios pós-treinadores. E portanto, tínhamos uma, digamos aqui, uma equipe muito coesa. Só mais na reta final é que tivemos algum apoio da parte psicológica, portanto da parte da psicologia, mais perto dos Jogos Olímpicos, creio que é uma das coisas que eventualmente naquele contexto pudesse mudar, mas tínhamos já condições muito diferenciadas para poder fazer um trabalho de qualidade.
THIAGO RODRIGUEZ: Como é para você, pessoalmente, ter participado desse processo de chegar a uma medalha olímpica, a um recorde mundial, para nós que fomos atletas, como é isso?
NUNO PINA: Para mim teve um significado muito, muito grande. Quero acreditar que estes Jogos Olímpicos de Paris de 2024, onde tive a oportunidade de participar e de estar ao lado do Pan e poder testemunhar ao vivo os feitos dos meus atletas. Para mim teve um significado muito grande porque eu fui nadador, adoro natação, a natação continua a ser a minha modalidade preferida, gosto de muitas outras, mas a natação é a minha predileta e nós que nadamos damos muito valor aos 100m livre, porque toda a gente de uma forma ou outra nada 100m livre, uns acabam a ser melhores, outros mais especialistas, outros menos, e portanto o ter sido nadador, o ter o acompanhado nos Jogos Olímpicos e ter sido os 100m livre foi um resultado muito especial. Eu e os treinadores que o acompanhavam, já tínhamos a ideia que ele podia fazer algo extraordinário, pelos registros de treino, pela forma como ele estava a evoluir, pela forma como ele se sentia, como víamos o estado anímico, mais comunicativo, feliz, confiante, que podia ser um resultado bom, mas ainda assim superou as expectativas, o que é mesmo a cereja no topo do bolo. Para mim, recordo a prova dele dos 100m livre, afinal, de uma forma que eu vou recordar sempre, porque eu não estava na piscina de competição, porque eu tenho que estar ao lado do Pan, até mesmo ele ir para a sala de chamada. Portanto eu estava a fazer o circuito de potenciação, fizemos o aquecimento antes de entrar dentro d’água, depois fez o aquecimento dentro d’água, em seguida tem uma rotina, mas a última coisa que ele faz é lançar a bola ao chão e algumas impulsões verticais. Ai fala comigo e segue para a sala de chamada. Como a piscina dos Jogos Olímpicos era tão grande, não dava tempo para eu ir arquibancada em tempo útil, portanto eu vi a prova no lugar de preparação das equipes. E ao meu lado estava um treinador, representando a França, mas que durante muitos anos foi técnico dos Estados Unidos: Bob Bowman, mais conhecido como o lendário treinador de Michael Phelps. Ele estava ao meu lado vendo a prova, e de fato, para mim, estar naquela posição vendo meu atleta e estar ao lado de um treinador que eu sigo há anos, foram uns minutos espetaculares da minha vida. Portanto sou muito grato por ter tido essa oportunidade.

THIAGO RODRIGUEZ: Teria mais alguma coisa para dizer aos brasileiros?
NUNO PINA: Eu acompanho a natação no Brasil também. Felizmente tivemos três membros da comitiva brasileira a trabalhar conosco aqui em Portugal. Não foi diretamente comigo, mas foi com a seleção portuguesa nos últimos anos, que correu bastante bem, onde aprendemos bastante com todos os três técnicos que aqui estão presentes, desde a parte de trabalho na água à parte da biomecânica e preparação física. Acompanho a natação brasileira desde quando Cesar Cielo se destacou, mas entre tantos outros nadadores que têm dado tantas alegrias também à natação do Brasil. Vou acompanhando de perto e, portanto, também deixar uma palavra de apreço à natação brasileira, que com tantos bons resultados nos tem inspirado aqui em Portugal e a mim próprio e durante toda a minha carreira. Deixar um cumprimento a toda a natação brasileira por esse bom exemplo e pelo bom trabalho que têm colocado. E é um gosto ter aprendido sempre com os bons exemplos da natação do Brasil, porque, para mim, tem e continua a ser um motivo de inspiração e um lugar para boa informação e boas práticas profissionais.
* Thiago Medeiros Rodriguez é fisioterapeuta, nadador e treina atualmente com a equipe Samir Barel Assessoria Aquática
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